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O Brasil coletivista e a ameaça à Identidade Cultural do Futebol com as SAFs

O Brasil é um país de dimensões continentais, marcado por uma diversidade de tradições que, apesar da distância geográfica e das diferenças regionais, compartilham um elemento central: a cultura coletivista. Ao contrário de sociedades individualistas, onde o sucesso pessoal se sobrepõe ao interesse do grupo, a cultura brasileira foi moldada pela força das comunidades, que constroem e mantêm vivas suas manifestações culturais por meio da união, da oralidade, da devoção e do trabalho conjunto.

As escolas de samba são um exemplo claro dessa força coletiva. Apesar de receberem investimentos públicos e privados, é o envolvimento direto das comunidades que dá vida ao espetáculo. Os desfiles são frutos de meses de trabalho de moradores, costureiras, soldadores, músicos e artistas locais, que se unem em prol de um projeto comum, mesmo que cada um tenha um objetivo particular, seja ele vencer, celebrar ou simplesmente participar. O mesmo vale para o Festival de Parintins, no Amazonas, onde a rivalidade entre os bois Garantido e Caprichoso mobiliza toda a cidade em uma disputa que é, antes de tudo, um espetáculo de pertencimento cultural. São eventos populares que se constroem com modéstia, mas carregam imenso valor simbólico.

Festas religiosas como o Círio de Nazaré, no Pará, e as romarias a Aparecida são outros exemplos da alma coletiva brasileira. Esses eventos mobilizam milhões de pessoas em atos de fé e resistência cultural, que não dependem de grandes patrocínios, mas da crença comum e da tradição repassada por gerações. O crescimento das comunidades evangélicas, muitas vezes sem apoio financeiro governamental, e a preservação de rituais das religiões de matriz africana, por meio da oralidade, também revelam a força de um povo que se une para manter sua identidade viva.

Nesse cenário, o futebol não é apenas um esporte. No Brasil, ele é uma extensão da cultura, da afetividade e da história de cada indivíduo. É a mais poderosa expressão popular do país. Por isso, somos conhecidos mundialmente como “Brasil, o país do futebol”. Diferente de outros lugares do mundo, onde o futebol é frequentemente visto como produto, aqui ele ainda é carregado de paixão, de lembranças afetivas e de identidade familiar. Os títulos desempenham papel fundamental nesse processo, pois ajudam a construir a memória coletiva do torcedor. Eles são pontos de referência emocionais, que marcam épocas, consolidam ídolos e reforçam a ligação afetiva entre o clube e a sua torcida. O torcedor brasileiro cria laços com o seu clube por tradição, pela camisa que o avô vestia, pelo hino que o pai cantava, pelo estádio que marcou um momento de infância. A relação do brasileiro com o futebol é moldada por afetos transmitidos entre gerações, por gestos simples e simbólicos que constroem uma identidade comum. O brasileiro torce por amor, não por lucro. O futebol, no Brasil, é profundamente emocional e comunitário.

Nossa história mostra isso com clareza. Em 1970, o tricampeonato mundial paralisou o país em uma explosão de alegria que marcou gerações. Em 1994, o tetracampeonato arrancou lágrimas de milhões, após 24 anos de espera, simbolizando não apenas uma conquista esportiva, mas um reencontro emocional com a identidade nacional. Já em 2002, o pentacampeonato fez com que toda a nação acordasse de madrugada, acompanhando os jogos disputados na Coreia do Sul e no Japão, movida pelo amor à seleção e à camisa amarela, que representa mais que futebol, representa o Brasil inteiro. Nenhum outro país viveu seus títulos mundiais com tamanha intensidade popular e coletiva.

Entretanto, a criação das SAFs, Sociedades Anônimas do Futebol, representa uma ruptura com esse modelo cultural. Ao transformar os clubes em empresas, com foco técnico, profissional e de alta performance, sob a gestão de investidores, muitas vezes estrangeiros, há um deslocamento da paixão para o consumo. O torcedor deixa de ser parte da construção do clube para se tornar consumidor de um produto, e produtos precisam dar retorno. Se o time não entrega resultados, ele deixa de ser consumido. A lógica da paixão dá lugar à lógica do desempenho.

Essa visão empresarial do futebol se contrapõe frontalmente à identidade cultural coletiva e democrática do povo brasileiro. Ao introduzir um modelo de gestão que exclui o torcedor do processo decisório e retira a alma afetiva do clube, corre-se o risco de esvaziar a relação entre clube e torcida. A memória, a história, os símbolos, os vínculos familiares, tudo isso é colocado em segundo plano diante do balanço financeiro e das metas de rendimento.

A criação das SAFs, portanto, contraria a essência cultural do Brasil, que enxerga o futebol como tradição familiar, laço afetivo e manifestação coletiva, e não como mercadoria. Quando se tem o futebol como paixão, cria-se um elo por identidade, por raízes, por aquilo que conecta você à sua família, à sua história, ao seu bairro. O brasileiro é passional, e isso faz parte da nossa riqueza cultural. Quando o futebol se torna apenas um produto a ser consumido, ele passa a exigir resultado constante. E, quando esse resultado não vem, o torcedor-consumidor simplesmente se afasta.

O perigo das SAFs não está apenas na profissionalização do futebol, algo necessário e bem-vindo quando equilibrado com a tradição, mas na substituição de uma paixão nacional por um produto globalizado. Quando o futebol vira um produto, ele perde sua raiz, seu território, seu povo. E o povo brasileiro, passional como é, não consome o que não ama.

Em um país onde o carnaval é feito por comunidades, onde festas religiosas arrastam milhões, onde o futebol para a nação por amor à camisa, é inaceitável que o coração do torcedor seja tratado como estatística de engajamento. O futebol brasileiro precisa evoluir, sim, mas sem abandonar sua essência coletiva, afetiva e popular. Sem isso, deixaremos de ser o país do futebol, para sermos apenas mais um mercado entre tantos outros.

Tiago Scaffo.

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