Houve um tempo em que o Brasil ditava o ritmo do futebol mundial. Não apenas pela excelência técnica de seus jogadores ou pelos quatro títulos mundiais conquistados (até então), mas pela forma única com que o esporte era vivido e compreendido em território nacional. Antes da chegada da Lei Pelé, em 1998, que mais de duas décadas depois desembocaria na Lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), em 2021, o futebol brasileiro operava sob uma lógica muito mais conectada com sua cultura e realidade socioeconômica do que com um ideal abstrato de gestão empresarial.
Nesse cenário anterior, clubes eram, em essência, associações civis sem fins lucrativos, regidas pelo direito privado e protegidas por uma lógica comunitária e cultural. Embora marcados por problemas de governança e clientelismo político, mantinham um vínculo orgânico com suas torcidas, seus territórios e suas histórias. O futebol funcionava como uma extensão da vida social, era memória, identidade e resistência.
A Lei nº 9.615/1998, conhecida como Lei Pelé, representou uma ruptura. Substituiu a antiga Lei Zico (Lei nº 8.672/1993) e impôs uma série de mudanças com o discurso da profissionalização do esporte. Uma das principais alterações foi o fim do “passe”, mecanismo que garantia aos clubes formadores alguma retenção sobre os atletas. Embora isso tenha favorecido os jogadores do ponto de vista contratual, criou um vácuo legal que facilitou a atuação de empresários e intermediários no mercado, acelerando o êxodo precoce de talentos. O Brasil, que antes exportava craques depois de consagrá-los, passou a fornecer matéria-prima bruta, sob medida para os interesses da Europa.
Ao longo dos anos 2000, os clubes brasileiros, fragilizados financeiramente, enfrentaram crescente dificuldade de manter suas estruturas e plantéis. Em vez de revisitar e reformar o modelo associativo com base em critérios técnicos e culturais nacionais, optou-se por importar soluções jurídicas com base no modelo europeu. Esse processo culminou na aprovação da Lei nº 14.193/2021, que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol (SAF). Inspirada parcialmente em estruturas de clubes-empresa europeus, especialmente da Inglaterra e da Alemanha, a SAF foi vendida como a panaceia para a crise dos clubes brasileiros. Contudo, a aplicação desse modelo em solo nacional desconsidera elementos estruturais: a ausência de regulação federativa eficiente, o pouco controle sobre o capital investido e a fragilidade institucional das entidades esportivas.
A imprensa esportiva brasileira teve papel determinante nesse processo. Longe de ser um espaço plural de debate, consolidou-se como agente ideológico da europeização. Programas e colunistas passaram a repetir, quase como mantra, que o futebol brasileiro era “atrasado” e que somente a lógica empresarial, com capital externo, CEOs e planilhas, poderia salvá-lo. Não houve espaço para questionar a viabilidade desse modelo em um país com tamanha desigualdade regional, ausência de cultura de compliance esportivo e enorme disparidade de receitas entre clubes.
Esse processo encontra um caso emblemático na trajetória recente do Vasco da Gama. Clube de origem popular e tradição inclusiva (tendo sido protagonista no movimento contra o racismo e o elitismo no futebol nos anos 1920 com a célebre Resposta Histórica), o Vasco foi um dos clubes que mais sofreu com a imposição de uma narrativa de crise crônica e incapacidade gerencial. A venda de 70% da SAF vascaína para a empresa norte-americana 777 Partners, em 2022, foi amplamente apoiada por segmentos da mídia como uma medida “inevitável” para a modernização do clube. Curiosamente, grande parte da torcida vascaína, mesmo ciente da histórica parcialidade da imprensa contra o clube, acabou aderindo ao discurso, aceitando a SAF como “única saída”. Trata-se de um caso evidente de como a mídia, ao longo do tempo, não apenas informou, mas moldou a percepção e o comportamento coletivo, mesmo em ambientes de resistência.
O modelo europeu, exaltado como padrão de sucesso, tampouco é homogêneo ou infalível. A Espanha é o exemplo mais explícito de distorção: enquanto Real Madrid e Barcelona seguem como associações com forte apoio estatal e privilégios fiscais, os demais clubes foram forçados a se tornarem sociedades anônimas. O resultado é uma liga profundamente desigual. A Alemanha, por sua vez, mantém a regra do “50+1”, que exige que os sócios do clube tenham a maioria do controle acionário, uma salvaguarda contra a perda de identidade e controle popular. Mas esses modelos são ignorados no debate nacional, que prefere importar versões adaptadas à conveniência de investidores.
Ao transformar clubes em produtos e torcedores em consumidores, o Brasil abdicou de sua liderança cultural no futebol. A essência comunitária do esporte foi sacrificada em nome de uma modernidade que, na prática, reproduz desigualdades, concentra poder e aliena o torcedor de suas próprias instituições. O país que outrora inspirou o mundo com sua irreverência e genialidade dentro de campo agora tenta desesperadamente copiar fórmulas que não respeitam sua alma.
Mais do que uma falha de gestão, trata-se de um erro de identidade. E talvez seja justamente por isso que o futebol brasileiro, apesar da abundância de talentos, vive um vazio simbólico. Perdemos a referência não porque fomos superados, mas porque abrimos mão de ser quem éramos.
Tiago Scaffo.